A expulsiva e apocalíptica força da ocupação da barragem: enxergando com A Gente Rio, Be Dammed de Carolina Caycedo
Macarena Gómez-Barris | Pratt Institute
Além de outras catástrofes inumanas, estamos diante da extinção planetária dos rios. Ainda assim, é comum que dentro das narrativas de extinção se espreite uma história atual e contínua de genocídio que é disfarçada pelas narrativas celebrativas, teleológicas e emancipatórias sobre o progresso humano. A construção de barragens e usinas hidrelétricas depende da expulsão de populações indígenas de seus territórios. Em termos materiais e representativos precisa, como coloca Patrick Wolfe, “eliminar ao nativo” (Wolfe 2006). Mais especificamente, a construção transnacional da Usina Hidrelétrica de Itaipu no Rio Paraná, entre Brasil e Paraguai, desapropriou violentamente, mais uma vez, o povo guarani de seus territórios ancestrais. Como a artista multimídia Carolina Caycedo documenta em A Gente Rio (2017), estes processos foram conduzidos por um estado policial que continuou desapropriando após o fim da ditadura militar no Brasil nos anos 80. Este contínuo desenvolvimentismo colonial estende a guerra perpétua contra os povos indígenas, uma guerra que estruturalmente expulsa enquanto oculta a força de sua contínua violência. Neste caso, a guerra está escondida na grossa lama onde o rio Paraná um dia correu, e dentro das paredes de concreto construídas para conter a imensa força do segundo maior rio da América do Sul. Parafraseando Caycedo, ¡maldição às usinas! “Damming, be damned”.
A câmera de Caycedo se torna uma importante ferramenta para discernir as condições estruturais adversas e repentinas de uma catástrofe ambiental racializada. Uma rápida busca de “Itaipu” na Wikipédia, por outro lado, torna impossível discernir o grau, a profundidade ou o percurso diferenciado da violência genocida diante de um dos maiores projetos hidrelétricos do mundo. A barragem é sinistramente descrita em termos pastorais:
A barragem de Itaipu é uma enorme usina hidrelétrica no rio Paraná, entre o Brasil e o Paraguai. É conhecida por seus passeios pela Iluminação da Barragem e pela vista do Mirante Central. A sala de comando do prédio principal controla as turbinas da usina. Perto do lado paraguaio, o Museu da Terra Guarani exibe cultura indígenas em exposições. Logo ao norte, o santuário Tatí Yupí é uma reserva natural com trilhas e pássaros nativos”.
O que falta nesta passagem tomada pela amnésia é a escala da destruição causada pelo mega-projeto desenvolvimentista de mais de 77 km de extensão que inundou mais de 667 km2 de terras guarani e desabrigou ao menos 38 comunidades indígenas (Ferreira and Kurtural 2017). A “sala de controle da usina” e o “passeio Iluminação da Barragem de Itaipu no Mirante Central”, na página da Wikipédia, estranhamente invocam um panóptico foucaultiano. Me concentro nesta descrição aparentemente banal porque ela captura o modo dominante de representação do que eu chamo de visão extrativista [extractive view]. Tais descrições da usina ignoram o colonialismo pernicioso que trabalha em favor de uma visualidade dominante que não percebe as violências históricas sobrepostas de um capitalismo racializado. Em outras palavras, o Museu da Terra Guarani não é um projeto inócuo de coleção e exibição para turistas ávidos — nunca foi —, mas é a reprodução do genocídio guarani, levado a cabo primeiramente pelos exploradores espanhóis, depois pelos missionários jesuítas, em seguida pelas milícias portuguesas e espanholas, depois pelo Estado brasileiro, e então, pelo gigantesco projeto e imaginário tecnocrático da barragem chamada “Usina Hidrelétrica de Itaipu”. De fato, o que está escondido dentro da referência às exibições da “cultura indígena” Guarani”, na entrada de Wikipedia, é o que J. Kēhaulani Kauanui entitula como a “perdurável estrutura da indigineidade” (Kauanui 2016); ou seja, o contínuo apagamento estrutural do genocídio colonial, de um lado, e as múltiplas formas de recusa e resistência indígena, do outro. O Museu da Terra Guarani que está ocultado na descrição da usina é um lembrete de vida e morte da persistência da indigineidade. Com efeito, o Museu da Terra Guarani representa um gesto colonial por parte corporação de Itaipu que eviscera e contém todo sinal de luta e sofrimento e da enorme desapropriação de comunidades Guaranis, cujas histórias e vida diária são há muito tempo organizadas pelas expulsões do capitalismo extrativo.
Pensando mais abertamente sobre formas atuais de reivindicações coletivas para sobreviventes de Itaipu, podemos dizer que, enterradas na zona extrativista da barragem e dentro dos territórios guarani, estão as memórias anticoloniais da insurgência indígena. Durante o século XVI, missionários jesuítas organizaram a espacialidade das terras Guarani em reduções e posteriormente em missões com o objetivo específico de reorganizar a percepção temporal indígena e sua relação com os arredores. A criação de um novo plano sensório facilitou a expansão capitalista, de modo que as crescentes redes de missões cristãs se tornaram centros de produção monocultural. Sob a guarda das comunidades guaranis, nos próximos 150 anos a pecuária bovina das missões produziria alguns dos maiores rebanhos de animais domesticados no hemisfério. Apesar do certo nível de autonomia inicialmente mantido pelos sistemas das missões dos poderes coloniais, estas atividades econômicas expansivas e seu lucro potencial atraíram a atenção dos colonizadores portugueses e espanhóis, cujas milícias chegaram em massa. E, com eles, chegou o decreto legal: o tratado de Madrid, que em 1750 produzia e documentava a justificativa da remoção forçada dos guaranis da economia das missões. Ainda assim, para os mais de 80 mil indígenas que se haviam estabelecido dentro do sistema das missões, e que por gerações haviam vivido dentro desta reorganização, a resistência a novas formas de expulsão foi intensa. Sepé Tiaraju, um guerreiro Guarani, liderou uma insurreição generalizada contra os poderes coloniais invasivos. O rechaçar desta rebelião se tornou um dos maiores massacres indígenas da história da América do Sul.
Começo com a enraizamento da violência histórica contra povos indígenas na região, e seu apagamento através da representação popular dominante, para contextualizar o filme de Carolina Caycedo A Gente Rio, Be Dammed. Este potente documentário usa depoimentos ambientais e a experiência direta de comunidades guarani para narrar visual e sonoramente a força apocalíptica e expulsiva da ocupação que produz a barragem. O filme começa com uma leitura de “Adeus a Sete Quedas”, do poeta Carlos Drummond de Andrade, cujas palavras ouvimos na voz de Verónica Villa:
Sete quedas por mim passaram,
E todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
A memória dos índios, pulverizada,
Já não desperta o mínimo arrepio.
Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
Aos apagados fogos
De Ciudad Real de Guaíra vão juntar-se
Os sete fantasmas das águas assassinadas
Por mão do homem, dono do planeta.
Aqui outrora retumbaram vozes
Da natureza imaginosa, fértil
Em teatrais encenações de sonhos
Aos homens ofertadas sem contrato.
Uma beleza-em-si, fantástico desenho
Corporizado em cachões e bulcões de aéreo contorno
Mostrava-se, despia-se, doava-se
Em livre coito à humana vista extasiada.
Toda a arquitetura, toda a engenharia
De remotos egípcios e assírios
Em vão ousaria criar tal monumento.
E desfaz-se
Por ingrata intervenção de tecnocratas.
Aqui sete visões, sete esculturas
De líquido perfil
Dissolvem-se entre cálculos computadorizados
De um país que vai deixando de ser humano
Para tornar-se empresa gélida, mais nada.
Faz-se do movimento uma represa,
Da agitação faz-se um silêncio
Empresarial, de hidrelétrico projeto.
Vamos oferecer todo o conforto
Que luz e força tarifadas geram
À custa de outro bem que não tem preço
Nem resgate, empobrecendo a vida
Na feroz ilusão de enriquecê-la.
Sete boiadas de água, sete touros brancos,
De bilhões de touros brancos integrados,
Afundam-se em lagoa, e no vazio
Que forma alguma ocupará, que resta
Senão da natureza a dor sem gesto,
A calada censura
E a maldição que o tempo irá trazendo?
Vinde povos estranhos, vinde irmãos
Brasileiros de todos os semblantes,
Vinde ver e guardar
Não mais a obra de arte natural
Hoje cartão-postal a cores, melancólico,
Mas seu espectro ainda rorejante
De irisadas pérolas de espuma e raiva,
Passando, circunvoando,
Entre pontes pênseis destruídas
E o inútil pranto das coisas,
Sem acordar nenhum remorso,
Nenhuma culpa ardente e confessada.
(“assumimos a responsabilidade!
Estamos construindo o brasil grande!”)
E patati patati patatá…
Sete quedas por nós passaram,
E não soubemos, ah, não soubemos amá-las,
E todas sete foram mortas,
E todas sete somem no ar,
Sete fantasmas, sete crimes
Dos vivos golpeando a vida
Que nunca mais renascerá.
O poema narra o niilismo do esplendor do Estado-nação no verso “Estamos construindo o Brasil grande”, um niilismo que se torna consequência da soberania do próprio Estado. Referenciando a falta de responsabilidade, Drummond, em luto, lamenta as sete cachoeiras do Guaíra, que na verdade eram dezoito diferentes cachoeiras que corriam juntas para produzir o mais volumoso poder hidráulico natural do mundo. De fato, a escala do esforço na construção da usina, durante a década de 1960, não pode ser subestimada, uma vez que extraiu o trabalho de 40 mil empregados e 12.3 milhões de metros cúbicos de concreto, além de ferro e aço o bastante para fabricar 380 réplicas da Torre Eiffel. Ainda assim, enquanto o poema lamenta as ironias da engenharia moderna colonial, usando a linguagem dos rios que desaparecem e da impunidade que carrega (“sete fantasmas” e “sete crimes”), ele também torna invisível a enorme desapropriação indígena no cerne desta nova zona de extração.
Em contraste, o olhar de Caycedo nos mostra as turvas geografias raciais da extração colonial e revela os dolorosos depoimentos da desapropriação. Em uma sequência cautelosamente elaborada que enfoca na experiência de desorientação das comunidades locais, um pescador narra como o rio Paraná agora está “completamente fora de controle”, seus níveis subindo de maneira anômala oito ou nove metros em um dia, para baixar até os 60 cm no próximo. Como o pescador diz, “o rio se move rápido demais e os peixes perdem sua conexão”. A desorientação dos peixes desestabiliza o ponto de vista antropocêntrico durante um momento no começo do filme que indica o desastre vindouro ou a literal e completa inundação sem aviso da bacia do rio, que abriga centenas de comunidades indígenas e mestiças. Como uma residente desabrigada conta, a iminente catástrofe não foi anunciada, “chegou às 4 da manhã” e a inundação da barragem levou com ela casas inteiras, carros, árvores desarraigadas, encostas de montanhas, animais e pessoas, sem aviso algum por parte dos funcionários públicos da violência imediata que estaria por vir. Após uma série de depoimentos, nós retornamos à voz do pescador que relembra o espectador que “antes da barragem, o rio ficava estável”. A câmera de Caycedo acompanha o desorientador movimento do rio e da vida após a destruição da causada pela usina, onde o nível da água sobe e desce. Com ela, nós vemos como a lógica das hidrelétricas se tornou a administração tecnocrática da vida ao redor. Como o pescador diz, “Itaipu faz o que quer com o rio”. Nós podemos fazer uma analogia similar sobre como o colonialismo enterra as histórias de sobrevivência guarani—ele faz o que quiser com estes territórios. Damming, be damned.
Macarena Gómez-Barris é professora e chefe do departamento de Ciências Sociais e Estudos Culturais do Pratt Institute em Brooklyn, Nova York. É ainda diretora do Global South Center (GSC), na mesma instituição, um centro de pesquisa que trabalha na intercessão de ecologias sociais, arte / política e metodologias decoloniais. Seu foco instrutivo está nos estudos latinxs e latinoamericanxs, a memória, os pós-vida da violência, a teoria decolonial, a arte de protestos sociais e as epistemologias queer e femme.
*Tradução ao português de Lua Girino.
Trabalhos citados
Ferreira, Fernando e Kurtural. “An Indigenous Community in Paraguay Faces on of the Biggest Electric Dams in the World.” Intercontinental Cry: Essential News on the world’s Indigenous Peoples. 29 de Dezembro, 2017. https://intercontinentalcry.org/indigenous-community-paraguay-faces-one-biggest-hydroelectric-dams-world/.
Gómez-Barris, Macarena. 2017. The Extractive Zone: Social Ecologies Decolonial Perspectives. Durham: Duke University Press.
Kauanui, J. Kēhaulani. 2016. “A Structure, Not an Event”: Settler Colonialism and Enduring Indigeneity. Lateral: Journal of the Cultural Studies Association 5, no. 1 (Spring): http://csalateral.org/issue/5-1/forum-alt-humanities-settler-colonialism-enduring-indigeneity-kauanui/.
Wolfe, Patrick. 2006. “Settler Colonialism and the Elimination of the Native.” Journal of Genocide Research 8, no. 4 (December): 387-409.